À MESA DE TÓQUIO
Como num puzzle imenso, com milhões de peças, os contornos milenares de templos budistas encaixam na arquitetura inovadora de arranha-céus. O trânsito de carros brilhantes, os letreiros em alfabetos japoneses ou, mesmo, a natureza dos jardins, cuidadosamente podada, tudo se encaixa nesse caleidoscópio de cores infinitas. Assim é a cidade de Tóquio, um puzzle ou uma máquina de quase 15 milhões de habitantes, em que todas as peças conhecem e cumprem o seu propósito.
Essa eficiência e essa extrema diversidade é o eixo de uma cultura que presta atenção aos detalhes mais ínfimos, uma cidade que gere o tempo, tanto na pontualidade infalível do metropolitano, quase 300 quilómetros de carris, como na poética celebração da primavera, as delicadas flores da cerejeira, a sakura.
Esse rigor e essa sensibilidade são visíveis também na comida. Desde a escolha meticulosa dos ingredientes nos mercados, passando pela preparação cheia de rituais e, por fim, no momento da degustação, exercício de íntima consciência.
Ao longo dos anos, tenho viajado muito com as edições internacionais dos meus livros. Depois de serem traduzidos e publicados noutros países, é habitual chamarem-me para participar em ações de promoção. Foi assim que, até ao momento, estive duas vezes em Tóquio. Essa maneira de viajar permite conhecer muita gente e ter experiências em contextos que, de outro modo, seriam inacessíveis. Tem-se conversas sobre o dia a dia. Conhece-se um pouco da vida por dentro.
Na cidade de Tóquio, já comi na cantina de uma escola, de uma empresa ou na casa de um jovem casal no bairro de Shibuya, por exemplo. As diferentes pessoas com que me relaciono no Japão levaram-me também a conhecer restaurantes muito diversos: os mais quotidianos e rápidos, onde entramos já depois de ter feito o pedido e pago nas máquinas que estão à porta; aqueles onde só trabalha uma pessoa por detrás de um balcão, ora virando-se para um lado e cozinhando, ora virando-se para o outro e servindo os únicos quatro ou cinco clientes que cabem no restaurante. Mas há muitos outros, como é o caso do famoso Robot Restaurant, com máquinas, luzes, pessoas fantasiadas e bastante ruído, ou aqueles em que só se consegue ir acompanhado por japoneses, em que a ementa é personalizada, combinada com antecedência e desenhada com a arte da caligrafia.
O Mercado de Tsukiji é o maior mercado de peixe do mundo. Para assistir aos leilões de atum, é preciso chegar por volta das 4 horas da madrugada. Custou-me a sair da cama, mas valeu muito a pena fazer parte dos 120 visitantes que são aceites por dia e que ganham esse direito por ordem de chegada. Numa área, licitam-se os atuns frescos e, na outra, os congelados. Ambos são vendidos inteiros. Os compradores passavam entre as filas de atuns, a analisá-los e a tirarem notas. O toque de uma sineta, dava início a um jorro de palavras japonesas, números, que saía da boca do leiloeiro, até que alguém o mandava parar e, assim, levava um atum para casa.
É difícil descrever a diversidade de peixe e de animais do mar que se encontra à venda no Mercado de Tsukiji. Naquelas bancas, existe o melhor de todos os mares e oceanos do mundo. Não admira, por isso, que seja também aí que estejam localizados alguns dos melhores restaurantes de sushi. De uma visita completa ao mercado, consta sempre um pequeno-almoço de sushi e sashimi, verdadeiro e tradicional, com wasabi raspado à nossa frente, diretamente da raiz.
É também neste mercado que se encontram algumas das melhores facas japonesas. Os mestres de sushi gastam fortunas em facas que lhes durarão a vida inteira e que, sem dúvida, são um dos segredos do sushi de maior qualidade. O aço e o apurado trabalho de cutelaria prometem uma enorme longevidade. Ainda assim, estas lojas, que estão abertas há várias gerações, oferecem garantia vitalícia aos seus clientes.
Como se existissem noutro mundo, mas igualmente impressionantes, os supermercados dos grandes armazéns, na cave, apresentam produtos perfeitos. Um exemplo dessa oferta são as frutas e, ainda mais especificamente, os morangos. São escolhidos um a um pela qualidade da sua forma, do seu tamanho, da sua cor. Os mais extraordinários são preservados à temperatura ideal e vendidos em caixas de luxo, como joias.
A editora que publica os meus livros no Japão possui uma vivenda no centro de Tóquio para receber os autores que não vivem na cidade. Nessa casa, havia uma senhora que, todos os serões, me deixava uma banheira com água morna e que, todas as manhãs, me preparava um pequeno-almoço tradicional japonês. Com um inglês muito rudimentar, tentava contar-me histórias de outros escritores. Às vezes, apontava para uma secretária e repetia: Murakami, Murakami.
A diversidade da comida no Japão é enorme. A criatividade culinária deste país surpreende-nos constantemente. Para além das massas, ramen, soba e dezenas de outras, existe uma enorme quantidade de pratos pouco conhecidos no estrangeiro, como é o caso do caril japonês, bastante diferente do indiano. Salgados, doces, ácidos, picantes, todos os sabores são possíveis. Havendo mesmo o umami, que designa um sabor específico que não existe na tradição da cozinha ocidental.
Entre todas as cidades que existem no mundo, Tóquio é muitíssimo especial. Depois de conhecê-la, de andar pelos seus bairros, ganha-se uma referência nova que faz muita falta para alcançar algum entendimento acerca daquilo que a humanidade é capaz de ser e de construir. A cultura japonesa, com a sua extrema sofisticação, é elevada ao expoente máximo nesta imensa metrópole.
Uma vida não é suficiente para terminar de descobrir Tóquio. Por isso, sonho todos os dias com o meu regresso, e todos os dias me animo, porque sei que está cada vez mais perto.
Texto de José Luís Peixoto
Fotos de Patrícia Santos Pinto
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