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José Luís Peixoto

TÓQUIO, JAPÃO

Atualizado: 30 de out. de 2020


Shibuya e Tokyo Sky Tree





SHIBUYA


O metro de Tóquio é a materialização do rigor que está presente em toda a cultura japonesa. Fazendo parte de uma rede ferroviária que se estende por toda a área da grande Tóquio, o metro opera em 290 estações na cidade e transporta cerca de 8,7 milhões de passageiros por dia.


Com este volume de tráfego, a eficácia do sistema impressiona ainda mais. A pontualidade é garantida ao segundo. A limpeza das estações e das carruagens é total. Com muita frequência se vê funcionários a limparem o que já está limpo. A imagem de alguém a deitar lixo para o chão é impensável. O civismo dos passageiros não tem exceções. Nas carruagens, ninguém fala alto, ninguém atende o telefone, ninguém come ou tem qualquer atitude que possa incomodar os outros.


Nos corredores do metro, como nos passeios da cidade, todos vão no lado que lhes corresponde, dependendo do sentido em que avançam. Diante das escadas rolantes ou para entrar nas carruagens, todos fazem fila.





Chegámos de metro à estação de Shibuya. Começámos a ver o cruzamento ainda não estávamos na rua. Enquanto esperam a abertura dos semáforos, centenas de pessoas vão-se aglomerando no passeio. À sua volta, arranha-céus cobertos de luzes e de ecrãs a transmitirem informação de toda a espécie, caracteres japoneses seguidos de pontos de exclamação. De repente, quando o semáforo abre para os peões, há uma enorme multidão de pessoas que se precipita de vários lados, que invade a enorme passadeira, atravessa a avenida e, durante um instante, essas multidões misturam-se e, logo a seguir, continuam em direções opostas, voltando a deixar a estrada para os carros. Observado de cima, ao longe, o cruzamento de Shibuya é como uma ampulheta a encher-se de areia, de gente, e, depois, no momento certo, a esvaziar-se.


Uma das imagens mais características de Tóquio é o cruzamento de Shibuya. Quando visto do interior da multidão, acrescenta-se o assombro silencioso de fazermos parte de algo que é muito maior do que nós. Temos apenas um corpo entre centenas de corpos, temos apenas um olhar entre tantos, podemos levantá-lo e, àquela hora da noite, encontraremos apenas montanhas de luz, estímulos que piscam, ideias e cores em todos os lugares para onde se olhe. De repente, como se fossemos libertados, há uma luz, precisamente uma luz, que nos dá permissão para avançar. Nesse momento, ganhamos espaço uns dos outros, avançamos em direção aos que vêm do outro lado, como se fôssemos abraçar-nos, na constatação súbita de fazermos todos parte da mesma espécie e do mesmo tempo. Mas não, atravessamo-nos, formamos uma corrente que se cruza com outra corrente.



No outro lado, as ruas de Shibuya. Gente, gente, uma densidade populacional calculada em 13500 pessoas por quilómetro quadrado, mulheres de quimonos tradicionais, passinhos presos pela fazenda, mulheres de tailleur, adolescentes vestidas de personagens de banda desenhada ou de desenhos animados japoneses, manga ou anime. Gente a passar entre prédios de um lado e de outro, cada andar tem uma loja. No rés-do-chão, está a indicação das várias lojas que correspondem aos vários andares. Quando se trata de restaurantes, é possível ver desde as ruas, as diversas camadas de pessoas sentadas em ambientes diferentes, restaurantes diferentes de andar para andar, a comerem pratos muito diferentes uns dos outros.


Na rua, à entrada, todos os pratos dessas ementas estão em exposição: réplicas em pvc, moldadas manualmente com um nível de precisão e detalhe, com um nível de rigor que, às vezes, parecem mais reais do que a própria comida que representam.








TOKYO SKY TREE


Na torre Tokyo Sky Tree, a mais de 600 metros de altura, existe cidade em todas as direções. No contorno do horizonte, distinguem-se sombras de montanhas longínquas, dizem-me que, em certos dias limpos, consegue ver-se o Monte Fuji, que está a mais de 100 quilómetros dali. Mas esses vultos são sobretudo uma gradação de cor no céu. Aquilo que é concreto, e que nunca termina, é a cidade.


Lá de cima, até os estádios parecem pequenos, prédios com dezenas de andares parecem pequenos. É assim, diante de edifícios minúsculos, que se começa a ter uma ideia da dimensão da cidade. No limite daquilo que os olhos conseguem ver, ainda há Tóquio, como se fosse infinita.


O rio Sumida atravessa a geometria dos humanos, superfície de inúmeras peças encaixadas. E numa das ruas mais próximas, um carro é um ponto de cor. Escolhi um, isolei-o entre tudo e, por segundos, segui-o com o olhar, imaginei-o. No seu interior, ia alguém que talvez não me imaginasse. Desde a Tokyo Sky Tree, as pessoas que caminham nas ruas são invisíveis. Tinha passado pouco tempo desde que nós próprios éramos essas pessoas. Assim que entrássemos no elevador e descêssemos, voltávamos a ser essas pessoas.


Lá em baixo, está o Mercado Tsukiji com todo o seu movimento, estão todos os restaurantes de sushi, está Shibuya, eu sabia mais ou menos em que direção ficava, estão os milhares de pessoas com quem nos cruzámos ao longo destes dias, gente que viajou na mesma carruagem de metro que nós, gente que subiu em escadas rolantes mesmo à nossa frente, gente com quem esperámos que o semáforo mudasse de cor.


Lá em baixo, estão os salões de pachinko, infernos de luz e de barulho, que jorram sobre as ruas sempre que as portas automáticas se abrem. Dentro de cada um desses salões, essas máquinas de jogo, de luz e de barulho sugam a atenção daqueles que estão sentados à sua frente, como se não existisse mais mundo, como se não existisse Tokyo Sky Tree e, no entanto, ali estava eu a contemplar tudo isso e a ser transcendido por tudo isso.


Depois de descobrirmos Tóquio, de sabermos que existe, nunca mais poderemos regressar a antes desse conhecimento. Nunca poderemos regressar ao tempo em que Tóquio era um sonho indefinido e distante, uma fantasia que imaginávamos a partir de imagens e ideias.


Agora, precisaremos sempre de regressar.







Texto de José Luís Peixoto (In A Viagem do Salmão, 2015, Casa das Letras)

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