Juntos no Rio de Janeiro
Desde sempre que o meu filho André consegue ver além do óbvio. Os seus desenhos são um sinal disso e, hoje, com dezanove anos, são também, uma marca da sua personalidade. Por mais anos que passem, por mais que cresçam, os pais nunca esquecem o tempo em que seguravam os filhos ao colo, o olhar puro com que os filhos começaram a descobrir o mundo. Por isso, não levem a mal que, desde os seus primeiros desenhos, me tenha impressionado e entusiasmado com as capacidades e invenções do meu filho.
Nestas semanas que passámos no Rio de Janeiro, o André esforçou-se por aprender com vários professores, participar em diversas atividades ligadas à ilustração, o sonho que persegue. Esse foi o pretexto que nos trouxe mas, além disso, esta viagem foi também uma oportunidade para estarmos juntos, pai e filho. Valorizamos momentos como estes, sabemos que são preciosos.
A vida ensinou-me que há muitas formas de adquirir conhecimento. Esta cidade imensa foi, ela própria, uma lição para nós. Regressamos a casa com uma paleta mais ampla de sensações nos sentidos, estamos agora organizados em torno de novas memórias. O André, o Rio de Janeiro e eu: não temos a certeza acerca de qual de nós foi aluno e qual de nós foi professor.
Sempre que o André foi com os amigos a algum lugar, ou quando saiu sozinho, tive de lidar com os meus medos. Esperá-lo durante as horas que passou nas ruas de uma cidade deste tamanho, cheia de imprevistos bons e maus, foi um teste. Circunstâncias como essa põem-no à prova tanto a ele, como a mim. É desse modo que ele cresce e, ao mesmo tempo, que cresce a minha confiança nele. Os filhos precisam de aprender e, com poucas diferenças, os pais também precisam de aprender.
Assim foi o passeio que o André deu no Morro do Vidigal. Esta comunidade da Zona Sul, pacificada em 2012, é atualmente alvo de um patrulhamento que visa impedir o regresso do tráfico. De certos pontos do Morro do Vidigal tem-se um panorama extraordinário da cidade, a beleza avassaladora do Rio, mas, para estrangeiros como nós, é uma pequena amostra da vida dura que também constitui a realidade desta metrópole.
Ao subir-se de mota até lá acima, através de ladeiras cobertas por cabos elétricos, passa-se por um quotidiano de casas díspares, mais ou menos precárias, urbanismo espontâneo, emaranhado de arquitetura popular, muito diferente dos calçadões de Leblon, Ipanema, Copacabana, as imagens mais comuns do Rio de Janeiro para os estrangeiros.
Não há nada de errado com esse cartão-postal, como lhe chamam por aqui, também são lugares que existem, mas vale a pena ter alguma consciência da grande diversidade de contextos desta cidade que, na sua região metropolitana, abriga mais de doze milhões de pessoas.
Uma nuance fundamental do Rio de Janeiro, que nem sempre tem eco em todas as descrições, é a importância da natureza na cidade. Existe o oceano e a praia, claro, mas existem também as árvores frondosas, produto da terra fértil, do temperamento atlântico e tropical. O verde encontra-se espalhado por ruas e avenidas, por recantos conhecidos ou pouco mais do que quase secretos.
Entre as extensões reconhecidas desses tons de verde na cidade encontra-se o Jardim Botânico. Inaugurado no início do século XIX, por D. João VI, servia originalmente como espaço de pesquisa e aclimatação de plantas e árvores com origem noutras partes do mundo. Após serem trabalhadas aqui, poderiam ser introduzidas entre a flora local e, assim, obterem-se lucros. Hoje em dia, este é um refúgio natural da cidade, não apenas para inúmeras espécies de aves e não só, mas também para quem queira encher os pulmões de ar limpo.
Ao lado, o Parque Lage é, igualmente, uma magnífica área verde, vinda de outros tempos da história. A natureza, plena em todos espaços de lazer que oferece, é testemunha desse passado e desse presente, assim como o palacete que é, desde há décadas, uma escola de artes visuais. Foi essa escola que nos levou a descobrir este lugar, aos pés do Morro do Corcovado.
Alguns dias depois, subindo no trem que parte da estação do Cosme Velho, através de mata atlântica, também nós estaríamos lá em cima, junto da estátua do Cristo Redentor, diante da paisagem mais icónica do Rio de Janeiro.
Foi num domingo de manhã que acompanhei o André a um encontro dos urban sketchers do Rio de Janeiro. Esta é uma comunidade internacional de desenhadores, unidos por vários princípios comuns, entre os quais a ideia de fazerem os seus trabalhos no próprio local que estão a desenhar, retratando o momento. Nesse dia, o encontro aconteceu junto ao Memorial de Getúlio Vargas e, ao longe, fui o pai que ficou a assistir à maneira como o seu filho chegou, conversou com os outros desenhadores, sentou-se ao lado deles, desenhou junto deles, integrou-se.
Aproximei-me quase no fim. A rebentar de orgulho, assisti aos últimos traços e, após caminharmos juntos algumas centenas de metros, demos um passeio na feira da Glória. Essa animação de cores, sons, sabores, cheiros, temperaturas, poderia ser uma metáfora de toda a cidade. Há as frutas de todas as cores e aromas, com nomes longos que exigem vogais abertas, uma língua própria, jabuticaba, cupuaçu; mas também há as bancas de comida pronta, a ser feita ali mesmo, de várias partes do mundo e do Brasil, que é ele próprio um mundo; mas também há as rodas de samba, que animam centenas ou milhares de pessoas diante de copos de cerveja.
Nesta cidade-multiplicidade, nesta quase-bagunça, escorre o suor, como nas ruas do centrão, entre vendedores de rua e gente que passa a empurrar carros com pilhas de produtos, deixem passar, deixem passar; como nos calçadões e no areal, com jogadores musculados de vólei e de futevólei, as bandeiras de países, equipas de futebol, e as cores das cangas estendidas sobre a calçada para venda, as caipirinhas e as águas de coco nas esplanadas juntos aos postos numerados; como nas ruas da Zona Sul, com a sua vida de bairro perfeito, com as mesas das lanchonetes e dos botecos, sucos de tudo, coxinhas, pastéis, quibes, esfias, e pratos de feijoada, virado, contrafilé.
É uma satisfação profunda ter partilhado estas ruas com o André, meu filho. Levamos este tempo no interior das nossas vidas, é uma lembrança que brilha e brilhará sempre. Obrigado, Rio de Janeiro, és realmente uma cidade maravilhosa.
Texto de José Luís Peixoto
Fotografias e Ilustrações de André Pires Peixoto
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