PORTUGAL
- José Luís Peixoto
- há 1 hora
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Quem se apaixonou por Portugal
Devemos tanto a quem se apaixonou por Portugal. Quando os encontramos, não somos capazes de compreendê-los completamente. Falam-nos de um tempo que esquecemos e que, por isso, achamos que nunca conhecemos. Pronunciam “Portugal” e essa palavra pode ter vários sotaques. O “p” pode ser mais suave, o “r” pode ser mais forte, o “l” pode desfazer-se no fim da palavra. Nós, quase esquecidos de que “Portugal” é uma palavra, sentimos pudor ao pronunciá-la dessa forma e admiramo-nos com o fascínio de dizê-la.
Quem se apaixonou por Portugal fala-nos de muito que repetimos e repetimos até deixarmos de conseguir explicar: palavras, pessoas, lugares que conhecemos até já não os sabermos entender. Voltamos a aprender tudo isso quando ouvimos a voz de quem se apaixonou por Portugal. E, no entanto, essa voz fala-nos de lugares simples, palavras, pessoas. Quando dizem o nome de cidades, falam do que esquecemos: caminhar em ruas e sentirmo-nos a caminhar nessas ruas, estar em esplanadas e sentirmo-nos nessas esplanadas, os cheiros, o tempo, a luz. Quem se apaixonou por Portugal sabe mais sobre a luz, sobre o tempo. Quando se referem à luz, os seus olhos falam de uma luz que já não distinguimos e, no entanto, de repente, lembramo-nos dela. Somos ainda capazes de vê-la com olhos antigos. Com a ajuda de quem se apaixonou por Portugal, voltamos a saber que Portugal é também essa luz. O tempo passa e, porque esquecemos, achamos que nunca conhecemos. Esquecemos que Portugal é a voz de gente que nos chama, vozes que um dia nos perguntaram: podemos começar de novo? Esquecemos que Portugal é a terra, os nossos pés sobre uma terra que deixámos de sentir quando nos enchemos de certezas e lhe chamámos nossa. Então, começámos a dizer a palavra “Portugal” como se disséssemos o nosso nome. E deixámos de entender completamente o que dizíamos, da mesma maneira que não entendemos completamente o nosso nome.
Apaixonámo-nos tantas vezes, dececionámo-nos tantas vezes. Perdemos tanto. Esquecemos. Continuámos. Quem se apaixonou por Portugal pode estar longe, pode estar agora no inverno de um país com neve, mas não esquece. Sabem mais de nós do que nós próprios. Eram adultos quando aprenderam a língua que descobrimos em crianças. Vivemos no interior dessas palavras e, tantas vezes, deixámos de as distinguir. Muitas vezes quem se apaixonou por Portugal ensina a nossa língua a outros, traduz as nossas palavras para que possam ser lidas pelo mundo. Admiramo-nos com esse trabalho, não entendemos as suas razões. Nós apaixonámo-nos e dececionámo-nos. Dizemos “Portugal” como se disséssemos o nosso nome, falamos de Portugal como se falássemos de nós. Não conseguimos entender as razões que levam alguém a apaixonar-se por nós.
Depois, claro, existe o amor. Nós não entendemos o amor, da mesma maneira que ninguém entende o amor. Quem se apaixonou por Portugal começa a amá-lo no momento em que descobre alguma coisa eterna nesse fascínio. Continuamos donos de um nome indecifrável, mas, para eles, o nosso nome é simples. O amor é sempre tão simples para quem o sente. Diante de quem se apaixonou por Portugal, percebemos que este país nunca nos pertenceu, e deixa de nos pertencer ainda mais. O “p” pode ser suave, o “r” pode ser forte, o “l” pode desfazer-se no fim da palavra, mas Portugal, e a palavra “Portugal”, pertence-lhes mais do que nos pertence a nós.
Nós escrevemos livros, palavras que arrancamos dos objetos, uma a uma, a nossa vida descrita em palavras imperfeitas, a vida que nunca sabemos porque nos calhou. Quem que se apaixonou por Portugal traduz essas palavras para outros idiomas, e nós observamos esse trabalho sem saber o que fazer às mãos. E nunca saberemos explicar que é tão importante para nós, nunca saberemos explicar que lhes devemos tanto. Desviamos o olhar, sentimos que gostaríamos de ser invisíveis e, também assim, somos felizes por um instante tão grande. Devagar, a pouco e pouco, sentimos que nos apaixonamos por quem se apaixonou por Portugal. E, quando estamos longe, chegamos a perceber que existe tanto que é nosso e que, ao mesmo tempo, nunca nos pertenceu.
Quem se apaixonou por Portugal olha para o nosso rosto e consegue ver-nos. Nós, por mais espelhos, por mais retratos, nunca nos vemos com nitidez. Como a nossa voz, que sai de dentro de nós, e que não ouvimos. Como o nosso rosto, que existe em todos os momentos, e que esquecemos. Quem se apaixonou por Portugal vê-nos, escuta-nos. Devemos-lhe tanto. Nunca conseguiremos agradecer suficientemente a quem se apaixonou por Portugal.
Texto de José Luís Peixoto
Fotografia de Patrícia Santos Pinto
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