Nazaré
Fiquei na Nazaré. Sinto claramente que estou aqui. Sim, viajar é estar, é o momento em que existe perceção, em que interrogo o que me rodeia, reparo na maneira como os sentidos reagem, concentro-me nessas impressões até lhes dar um nome. Estou num quarto às escuras, é escassa a claridade da noite que entra pelas linhas entre os cortinados e as vidraças da porta da varanda. E, no entanto, seria capaz de refazer o que vi neste quarto simples, a cama onde estou deitado sobre os lençóis, a televisão que não cheguei a ligar. Essa lembrança não seria o quarto onde estou, mas sim aquele onde estive, irremediavelmente perdido no passado. Agora, aqui, estou entre a escuridão, vasta, sem fim, e algumas sombras, vultos mal recortados por penumbra. E o mar, todo o oceano, como um monstro.
Já depois das duas da manhã, quando a Avenida da República se calou ou, melhor dizendo, quando se recolheram os últimos frequentadores da sexta-feira, ficou apenas o rugido do oceano. Sei que é cíclico, as ondas a lançarem-se e a recolherem-se, mas o som que aqui ressoa parece permanente, uma lentíssima explosão a deflagrar ao longe.
À chegada à Nazaré, quis ir ao Sítio. Essa era a melhor memória que guardava das minhas visitas de infância. O deslumbramento daquela paisagem tocou-me o peito para toda a vida. Segui cada indicação do GPS, voz intransigente, mas quando, por fim, anunciou que tinha chegado ao meu destino, dei por mim diante de um parque aquático desativado. Só mais tarde, em conversa com nazarenos, percebi que o Sítio não é apenas o miradouro que recordava, é um bairro inteiro, uma zona. Então, recusei-me a aceitar aquele destino, era um triste destino, a precisar de pintura, com ervas mais altas do que as vedações. Voltei a programar o GPS, desta vez para o Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, outra das lembranças que mantinha.
No exato instante em que estacionei e desliguei o motor, soaram as badaladas das sete da tarde na torre, uma a uma, encheram o ambiente. Avancei pelo largo, com o santuário à direita e o miradouro em frente, lá ao fundo. O cenário era o que recordava das excursões de criança, mas, naquele instante, atacado por uma ventania zangada. Os objetos expostos no exterior das lojas, toalhas de praia, toalhas de mesa, camisolas de lã dos pescadores, contorciam-se nos cabides como se estivessem aflitos e quisessem fugir. Apesar da neblina polvilhada nos contornos, a vista do miradouro recuperou o espanto com que a vi pela primeira vez, de mão dada com os meus pais. E o mundo apresentou-se simplificado num instante, dividido pelo essencial: Nazaré, a praia, o oceano, o céu. Quem estava lá em baixo não conseguia ter essa clareza, confundia-se, dava valor a detalhes que, observados dali, eram irrelevantes.
Senti o tamanho dessa imensidão também quando lhe virei as costas. Todas as pessoas a olharem para a mesma direção, a tirarem fotografias para a mesma direção e eu, como se contrariasse toda a gente, virado ao contrário. Reparei nas mulheres que vendiam frutos secos e biscoitos, vestidas com as sete saias, o traje típico das nazarenas. Reparei também no padrão de longos triângulos calcetados no empedrado. Reparei num comércio que, entre canecas e bibelots, anunciava lenços a dois euros e canários também a dois euros.
Quando regressei com o olhar à paisagem, quando cedi perante o magnetismo da pressão coletiva, a neblina tinha progredido, cobria Nazaré como se tivesse chegado a hora de fechar a loja. Motas de água desenhavam círculos de espuma no mar que, lá ao fundo, se diluía de encontro ao céu. Voltei a virar as costas, desta vez para iniciar a minha saída, passei por uma dessas mulheres com sete saias, cantava baixinho enquanto enrolava um cordel à volta do chapéu de sol desbotado.
Jantei lá em baixo, no restaurante da residencial onde estou a passar a noite. Carne ou peixe? Que pergunta, estamos em Nazaré. O dono, o senhor Alfredo Vicente, escolheu os linguados que o João Delgado e eu comemos. O sal sobre a pele grelhada, as batatas verdadeiras, o azeite: talvez seja melhor não dar ânimo a essas lembranças gastronómicas agora, neste quarto de luzes apagadas, sem comida. Mas registe-se a excelência da refeição.
O João foi pescador durante treze anos. Herdou algumas lições, aprendeu outras com essa experiência. Falou de um tempo diferente, do luto das mulheres pelos naufrágios, antes do surf e das ondas gigantes da Nazaré. Entre o muito que me disse sobre pesca e pescadores, fixei a descrição que fez da maneira como os pescadores têm de saber ler o mar. Talvez por andar às voltas com a literatura e seus desafios, essa ideia fascina-me: ler o mar. Tanto mais que se trata de uma leitura que pressupõe muitas outras: ler as marés, as correntes, o vento, as luas. Sou analfabeto em todos esses códigos, não tinha sequer percebido que podiam ser lidos, que o mar é como um texto.
O mar, o senhor Alfredo Vicente dá a notícia de que me guardou um quarto com vista para o mar, justamente onde estou, este rugido que povoa a escuridão. Amanhã, quando acordar, sei que vou afastar os cortinados, abrirei a porta da varanda e, por fim, terei este Atlântico infinito à minha frente. À minha esquerda, estará o campo de futebol de praia, com bancadas e patrocínios. À minha direita, estarão as barraquinhas, arrendadas ao dia ou à semana, dispostas na sua geometria impecável. Haverá ainda um pequeno resto de neblina em tudo, mas há de levantar ao longo da manhã. Afinal, estamos em agosto, mês de veraneantes que não se deixam intimidar com o microclima do Oeste, emigrantes regressados do além-Pirenéus. Por isso, pouco faltará para que se retome o movimento da calçada, transporte de toalhas ao pescoço, chapéus de sol entalados debaixo do braço, cadeiras, geleiras, sacos.
Como sei que será assim? Sei, simplesmente. Esse é um dos mistérios da escrita e dos seus tempos, perde graça se for revelado. Na verdade, sei as cores exatas de tudo o que conseguirei ver da varanda do meu quarto, terceiro andar da Residencial Adega Oceano, quarto 304. Haverá um cão a serpentear entre as pessoas, rabo levantado, acostumado às multidões da Nazaré, e há de deitar-se de costas na areia e esfregar-se, aprendeu essa técnica de apaziguar comichões. Haverá gente de bicicleta, a correr, a manhã de sábado, distinta de todas as outras. Haverá uma mulher de chinelas e avental, no passeio, a segurar uma tabuleta: quartos, rooms, chambres, zimmer. Alguém lhe pedirá direções e ela, sem perder tempo, saberá apontá-la com o bico da própria tabuleta.
Assistirei a tudo isso da varanda do quarto. E, de repente, haverá um instante em que entrarei no quarto, recolherei a minha mochila e descerei ao rés-do-chão. Paralelo ao mar, também eu serei uma das pessoas desta rua, sob vigia do miradouro do Sítio. E não irei logo embora da Nazaré, ficarei um pouco mais.
Texto e fotos de José Luís Peixoto
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