Fomos lá tão longe fazer promessas tão importantes
Não sei onde estava a lua. Tenho a memória de um céu negro, opaco, mas que não pesava. Depois do dia, aquela hora do serão era fresca, própria para respirar sem pressa. De mãos dadas, avançámos na direção do mar. Parámos no alto da linha em que a areia ficava lisa. As ondas eram tão tranquilas como o seu som, lançavam-se devagar e, nesse movimento, estendiam toda a espécie de lixo: objetos sem forma e sem força, que rebolavam sobre si próprios, restos sem cor, negros como o céu, negros como as ondas que os arrastavam e como todo o mar Arábico.
A praia de Chowpatti estava cheia de pessoas, famílias inteiras de várias gerações sentadas em círculos espalhados pelo areal. Os postes de iluminação tentavam cobrir a praia inteira, mas misturavam-se com a sombra e apenas conseguiam criar uma meia-luz. Melhor assim. Dessa maneira, não perturbavam a moderação do momento. Isto, claro, apesar das mil coisas a acontecerem ao mesmo tempo, apesar do clamor imenso da multidão de muitos milhares de pessoas que enchia a praia, apesar da música vinda de todos os lados. Havia grupos de adolescentes muçulmanas, de rosto coberto, a fazerem pose diante de flashes de máquinas fotográficas espalhadas na distância. Havia vendedores de balões ou de moinhos de papel, vendedores de bolachas, rebuçados e outros pacotes brilhantes em bancas improvisadas, enfeitadas por luzes de árvore de Natal. Havia alguém em algum lugar a tocar tambor. Havia de tudo, mas eram as crianças que mais se ouviam, as suas vozes finas a chamarem alguém, a descobrirem alguma coisa; eram as crianças que estavam mais presentes: corriam atrás de uma bola, alisavam a areia com as palmas das suas pequenas mãos, corriam num mundo só delas, como se os corpos dos adultos sentados ou as pernas daqueles que passavam fossem a paisagem indiferente desse mundo.
Às vezes, quase atropelando cães magros que caminhavam devagar à procura de qualquer migalha, passava um carro a pedais com uma criança sentada. Esses veículos vinham envolvidos por luzes a piscarem e, às vezes, tinham um rádio de pilhas preso com arames, a espalhar música distorcida. Eram empurrados por rapazes mais velhos ou por crianças mais pobres. De certeza que custava fazê-los andar na areia. Não sei quanto se pagava. Não devia ser muito, havia uma fila desordenada à espera de vez.
Ao fundo da praia, qualquer coisa chamava. Caminhava-se até lá. Foi o que fizemos, sempre de mãos dadas. Era um teatro ao ar livre. O público estava sentado em cadeiras de plástico e dividido por castas. Calculo em quatro mil o tamanho da multidão que olhava para um palco onde vários homens vestidos e pintados de deuses se aproximavam de microfones para dizerem as suas falas e, às vezes, para cantarem. Em coro, quatro mil pessoas a rirem-se, quatro mil pessoas a admirarem-se, quatro mil pessoas a aplaudirem. Depois, voltámos para trás, a contornarmos grupos de gente sentada, mulheres de sari, homens de camisa com as pontas dos colarinhos muito bicudas, voltámos para trás, a sorrirmos para crianças que esbarravam connosco e que, de repente, se surpreendiam com as nossas diferenças. Éramos os únicos não-indianos e, no entanto, nesse serão, éramos mais indianos do que antes. Tínhamos chegado havia alguns dias a Mumbai. Nas veias, o sangue já circulava com aquele picante da comida. Também por isso, conseguíamos sentir aquela praia com milhares e milhares de pessoas como um lugar de sossego. Éramos capazes de compará-la com o resto da cidade.
Nesse mesmo dia, eu tinha visto o trânsito das ruas à volta do mercado de Crawford refletido nos olhos grandes dela. Estávamos dentro de um desses táxis pretos e amarelos, com o interior descarnado e autocolantes de ganesha nos vidros. Íamos sentados no banco de trás e, no centro de um cruzamento, estávamos rodeados pelo mundo inteiro a apitar: táxis iguais ao nosso, os condutores de janela aberta encostados à nossa janela aberta; bicicletas e motas a terem exatamente o tamanho certo para passarem nos espaços entre os carros; homens de roupas rasgadas a atravessarem com cestos vazios ou cheios à cabeça; vacas admiradas a dirigirem-se para o monte de lixo que existia à volta do caixote a abarrotar. Tudo isto se refletia nos olhos dela. Entre o barulho, o fumo, debaixo de um viaduto sujo, uma família inteira, como se estivessem na sala. E, realmente, estavam rodeados por tudo o que possuíam: alguma loiça, alguns panos. A mulher com uma criança nos braços, várias crianças um pouco mais velhas à sua volta.
Nunca vi tanta pobreza como nos países a que os comentadores chamam "economias emergentes". Numa manhã de Mumbai, quando o calor já tinha começado a sua fervura, recordo-me de estarmos a caminhar em direção à Porta da Índia, e de passarmos por um homem deitado no chão. Era esquelético, estava quase nu, a pele parecia assentar-lhe diretamente sobre os ossos e tinha o rosto tapado por um pano. Percebia-se que não estava morto porque as suas costelas faziam o movimento de respirar. Olhando assim, sem lhe ver o rosto, parecia ser um homem de trinta e tal anos. Ao seu lado, encostada à parede, de rosto desconsolado, estava uma mulher mais velha. Tomava conta dele e estendia a mão quando alguém passava à sua frente, talvez fosse a sua mãe.
Aquele homem estava ali a morrer.
Por respeito ao mundo em que vivemos, penso que é justo que gastemos alguns instantes do nosso sábado a imaginar o que será o sofrimento de um doente terminal, muito provavelmente sem medicação, deitado num passeio de cimento a escaldar, no centro de um congestionamento permanente de trânsito, com a mãe, ao lado, a pedir moedas de muito baixo valor a estranhos que quase sempre a ignoram. E, já agora, também podemos imaginar o que é ser essa mãe.
"Bombaim" é o nome colonial, o nome dos ingleses. Ninguém se incomoda que um estrangeiro o utilize mas, atualmente, o nome oficial, de origem marata, é "Mumbai". Mudar o nome de uma cidade nunca resulta completamente. Os nomes anteriores só morrem quando desaparece a memória daqueles que aprenderam a chamar-lhe assim. Ao mudar-se o nome de uma cidade, está a dar-se-lhe mais um nome, não a substituir o anterior. Mumbai está nesse momento em que tem dois nomes. O nome colonial faz muito sentido na Porta da Índia, que é um arco de basalto com 26 metros de altura, construído durante a administração britânica para celebrar uma visita do rei em 1911. Aí, tirámos fotografias e, ao lado de grupos de homens abraçados, amigos, olhámos para a distância turva do mar.
Caminhámos muito em Mumbai. Essa foi a nossa maneira de deixar que a cidade passasse por nós: de repente, envolvidos por uma multidão de crianças de uniforme, com malas de couro grosso às costas; de repente, homens a martelarem lata, a remendarem sapatos, a amassarem naan, e mulheres sentadas no chão a fazerem longos colares de flores, a passarem com vasilhas de água à cabeça; gente a querer vender-nos qualquer coisa, limonada, porta-chaves ou incenso; cabras a comerem ervas e cartão; uma mulher a vender hortaliças enquanto cata piolhos da cabeça de um rapaz; um homem carregado com um monte de sacos de algodão doce com o dobro da sua altura; de repente, gatos; e dois homens a coserem um colchão com agulhas enormes; alguém a varrer a rua, a soldar cabos de aço, a arranjar uma bicicleta, a rezar num pequeno altar, e uma família de cinco pessoas a passar de mota, seguida por outra família de cinco pessoas a passar de mota. De repente, tudo de todos os lados.
Na estação central de comboios, tivemos o fragmento possível de consciência acerca da multiplicidade de Mumbai. Faz sentido que exista um sentimento religioso tão intenso na Índia. É transcendente estar
rodeado por tantas pessoas, animadas por tantos destinos secretos. Têm todas as formas, são milhares, e todos têm uma direção. São marés, correntes. É transcendente imaginar que cada uma dessas pessoas tem uma visão do mundo e uma rede de relações. Nós somos dois, de mãos sempre dadas, cada um de nós é um. Esses milhares de pessoas são também um, mas multiplicado por milhares.
Numa das paredes da estação central, estava uma folha colada com fita-cola. Nesse papel manchado, estava a fotografia de um homem desaparecido. Tinha vestido a sua melhor camisa, as suas melhores calças de boca de sino. Quando tirou a fotografia, não acredito que imaginasse que alguma vez iria ser utilizada para esse propósito. Eis algo que, quase de certeza, nunca se imagina. Era uma fotografia bastante garrida. Não parava de passar gente à sua frente, reparavam apenas nos seus pensamentos. Aquilo que me impressionou foi que alguém acreditasse que se pudesse encontrar uma pessoa desaparecida ali. Submerso por um multidão compacta, resgatado apenas pelas nossas mãos dadas, pareceu-me que quem se perdesse ali, desaparecia para sempre.
À noite, numa rua perto do mercado Chor Bazaar, lembro-me de seguirmos no centro de uma multidão semelhante, respeitando o seu ritmo e, subitamente, nas nossas costas, sentimos um táxi. Caminhávamos devagar, colados aos da frente, com os de trás colados a nós, sem espaço para nada e, no meio desse aperto, um táxi. Então, como uma espécie de milagre, as pessoas encontraram um espaço impossível para se afastarem, algumas quase subiram para cima do táxi, que continuou, sereno, como se fosse carregado pela multidão ou como se flutuasse nela. Enquanto isso, com indiferença, várias músicas a lançarem-se dos dois lados da rua.
Paralela à miséria constante, ao sacrifício, Mumbai também é a alegria dos estímulos. Todos os sentidos são chamados a viver. E há sorrisos permanentes. E cada sorriso é uma lição. Com frequência, no conforto, mal habituados, desaprendemos aqueles sorrisos.
Dos muitos lugares onde sentimos essa verdade, o Dhobi Ghat foi aquele onde nos abraçámos mais. À nossa frente, fileiras de lavatórios de cimento, onde estavam homens mergulhados em água suja até à cintura. Levantavam grandes mantas encharcadas e, como se lutassem com elas, torciam-nas, escorriam-nas, atiravam-nas de encontro a uma pedra e batiam-lhes. Esses movimentos pareciam perpétuos, as mãos desfaziam-se ao cumpri-los, a pele dissolvia-se na água grossa. Depois de um dia ou de uma vida ali, um homem não serviria para mais nada. À volta, varais infinitos de roupa estendida e uma extensão de telhados de zinco, barracas, labirinto de vielas. Depois, imponentes, lá ao fundo, prédios imensos, modernos, a esbanjarem arquitetura.
Atravessámos a cidade de mãos dadas. Encontrámos muitos lugares para trocar palavras só nossas. Não nos queixamos de nada, pelo contrário, está muito bem assim, mas sabemos que talvez não tivéssemos suportado o caos, se não transportássemos uma ordem tão perfeita dentro de nós.
Texto de José Luís Peixoto
Fotos de Patrícia Santos Pinto e José Luís Peixoto
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