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José Luís Peixoto

GUAPORÉ, BRASIL/BOLÍVIA

Atualizado: 30 de out. de 2020

Não são apenas eles que estão isolados de nós,

nós também estamos isolados deles








Juarez e eu estávamos suspensos. Ele encostado à ombreira da porta de casa, cabelo comprido, índio, de calças e chinelos, em tronco nu. Havia o silêncio da natureza a existir em toda a parte. Às vezes, Juarez matava mosquitos com palmadas no peito. Quando acertava, raspava as mãos na parede de madeira. Esses gestos não desfaziam o silêncio de Sagarana, mesmo que as crianças passassem por todo o lado, a pedalarem em bicicletas muito maiores do que elas, a entrarem ou a saírem de casa, sob os braços do pai, que lhes podia dizer alguma coisa na sua língua ou, na maioria das vezes, podia continuar indiferente, como se não os sentisse, de olhos semi-cerrados, como se não sentisse nada.

Sagarana é uma aldeia indígena de sessenta e duas famílias da tribo Uarí. No estado da Rondónia, na margem brasileira da confluência entre os rios Mamoré e Guaporé. Do outro lado, fica a Bolívia, composta pela mesma mata cerrada, a mesma Amazónia.



Eu tinha feito algumas perguntas a Juarez. Ele tinha respondido muito devagar com palavras e sílabas soltas, a deixar espaços enormes entre cada palavra. Depois, a libertar todo aquele silêncio. Às vezes, levava a mão ao rosto, armava o dedo em forma de gancho, unhas grandes, e limpava o nariz longamente, em profundidade. O tempo, a tarde a deslizar, o som das aves, um coro mundial de insectos, as crianças descalças, meninas com vestidos manchados de terra; e, por fim, Juarez a tirar o dedo do nariz e a esfregá-lo na parede.


Num ponto de silêncio, houve alguma coisa que o chamou. Deu um passo, deu outro e conduziu-me até à escola, a poucas dezenas de metros. Pelo caminho, apontou-me a casa do cacique, lá ao fundo. Em toda a parte, pés de mamão, papaia, cheios, a explodirem. Entrámos na sala, Juarez em tronco nu, interrompemos a aula, e fui apresentado como "o poeta". Tanto as professoras, duas freiras, como os alunos ficaram parados a olhar para mim, à espera que dissesse alguma coisa.


Falei-lhes do Festcineamazónia. Nessa noite, em Surpresa, a pouco mais de uma hora pelos caminhos do mato ou do rio, voltaria a haver "função", como lhe chamava o palhaço argentino Martin Martinez. Antes dele, Bado, músico de Porto Velho, capital da Rondónia, e eu, o poeta. A seguir, a projecção de alguns filmes, uma vez que o Festcineamazónia nasceu como festival de cinema, tendo-se alargado com os anos a festival de "artes integradas", que é uma forma polida de dizer que há espaço para todas as artes. Mas a explicação não estava completa, continuavam todos a olhar para mim, sem perceberem porque estava a falar naquele idioma que, apesar de estranho, conseguiam entender tão bem.





Durante quase todo o mês de agosto de 2013, avancei de barco pelo rio Mamoré e, depois, pelos mais de mil e quatrocentos quilómetros do rio Guaporé, lendo poesia, contando histórias a crianças e oferecendo pequenos livros meus em comunidades muito isoladas, rodeadas de floresta amazónica, tanto no lado brasileiro, como no boliviano.



Atracávamos de madrugada ou já de manhã, passados um, dois ou três dias desde a última vez que tínhamos estado em terra. As pessoas vinham ver-nos chegar. Saíamos um a um, a equilibrar-nos sobre uma prancha de madeira, e batíamos com os pés para sentir bem aquele chão firme. Um grupo de homens espalhava-se à procura da melhor clareira para montar a tela de cinema, habitualmente no centro da povoação: ao lado de uma enorme mangueira com baloiços pendurados nos ramos, na praia ou na praça principal, se fosse um lugar onde havia ruas e praças. Eu saía à procura de uma escola. Era aí que contava a história que trazia preparada desde Portugal.

Ao longo do caminho, fui aperfeiçoando um conto em que misturava Portugal comigo próprio. Num lugar parecido com o Alentejo, o protagonista cruzava-se com personagens retiradas das minhas tatuagens. À medida que cada personagem chegava à história, eu mostrava a tatuagem correspondente perante o espanto de crianças de várias idades. Depois, num revés, o protagonista tinha um azar com pregos e, nesse momento, apontava para os meus piercings. Em descrença e em fascínio, dezenas de pequenos dedos vinham tocar-me nos braços, na orelha e no rosto.




E mesmo os adultos tinham dificuldade de entender quando tentava explicar-lhes que, no lugar de onde vinha, a terra tem uma cor diferente. Em alguns lugares sem acesso por estrada, rodeados de Amazónia impenetrável, separados da cidade mais próxima por um dia de barco, falei com rapazes que não sabiam o que era um carro e, ao descrever-lhes Portugal, o Alentejo, Lisboa, senti-me a falar-lhes diretamente para a imaginação, conseguia ver-lhes as palavras refletidas nos olhos.


Ao serão, as luzes que iluminavam a tela e a manta colorida onde nos apresentávamos, geradas por um motor, eram quase sempre as mais fortes da localidade; às vezes, eram as únicas. O público começava a chegar cedo: famílias inteiras vestidas com as melhores roupas. As crianças já me conheciam, vinham muito penteadas, as meninas com ganchos, e diziam aos pais: aquele é o poeta. Às vezes, ouvia-os a recordarem uma passagem da história aos pais, era já a segunda vez que lha contavam. Outras vezes, vinham ter comigo, ofereciam-me conchas, abraçavam-se a mim ou, então, ficavam a sorrir-me com os olhos.




Por esta ordem: a música, a poesia, o circo e o cinema. Eu era a poesia. Apresentado e chamado sempre da mesma maneira, caminhava para o microfone e, conforme toda a gente esperava, lia ou dizia de cor alguns poemas meus. No fim, apresentava o palhaço Martin Martinez. Assisti sempre ao seu número, avaliava as pequenas diferenças de reacção de noite para noite: as facas, o fogo, os balões.


Antes, no barco, eu passava pelo Martin a maquilhar-se debaixo de pouca luz, segurando um pequeno espelho. Às vezes, ajudava-o a carregar o acordeão ou algum dos seus apetrechos. Nas terras onde chegávamos, sentia que todos éramos entendidos como uma espécie de gente do circo.





A primeira apresentação aconteceu em Guajará-Mirim, cidade de ruas direitas, paralelas e perpendiculares, onde as pessoas passavam de bicicleta, muito devagar, deixando as marcas dos pneus nas ruas de terra vermelha. Os casais de namorados passeavam lado a lado, de bicicleta. Na outra margem do rio, viagem de dez minutos, estava Guayaramerin, irmã gémea boliviana, de ruas muito mais confusas, onde toda a gente passava de motorizada, o cheiro a gasolina. Onde os casais de namorados também passeavam lado a lado, mas de motorizada.



Quando estava lá, pareciam-me pequenas cidades, na aceção brasileira do termo. Paradas no tempo como as cidades das telenovelas da minha infância: com coronéis, velhas beatas e um louco na praça. Mas, à medida que avançava, percebia como era relativo o seu tamanho. Após alguns dias no rio, as pessoas falavam de Guajará-Mirim e contavam os seus planos de ir lá no ano seguinte; mais alguns dias de viagem e gabavam-se de já lá ter estado uma vez na vida; mais alguns dias e falavam dos familiares que tinham lá e que não viam havia anos; mais alguns dias e perguntavam como era Guajará-Mirim porque queriam sonhar, exatamente como perguntariam acerca de Paris ou de Nova Iorque, se alguma vez tivessem ouvido falar de Paris ou de Nova Iorque.



Existia uma distância que era maior do que aquela que fazíamos durante noites, manhãs e tardes seguidas, durante dias, a cerca de trinta quilómetros por hora. No início, por exemplo, eu admirava-me com a maneira como as pessoas não trancavam as portas de casa. Ao fim de algumas paragens, convidavam-nos para todas as casas, ofereciam-nos o que tinham e ficávamos com as famílias como se nos conhecessem havia muito tempo. Mais tarde, mais dentro do rio, éramos colocados tão à vontade, que os donos saíam e deixavam-nos lá, sozinhos nas suas casas, deitados nas redes onde dormiam.


Esses eram lugares com poucas centenas de pessoas, alguns sem qualquer comércio, outros com um mercadinho, mistura de mercearia e de tasca, centro de um aglomerado de casas com telhados de colmo. Os telemóveis não tinham rede. Havia um telefone público: um orelhão que funcionava com cartões, mas não havia cartões à venda. Em Forte Príncipe da Beira, cheguei ao mercadinho e a senhora lembrou-se de alguém que tinha um cartão com alguns impulsos. Saiu e voltou ao fim de meia hora com um cartão de cinquenta impulsos que ainda tinha dezasseis. Fizemos as contas ao preço de cada impulso. A ligar para Portugal, cada impulso durava cerca de um ou dois segundos de chamada.


Em grande parte desses lugares, as oportunidades de ganhar dinheiro não são muitas. No entanto, a organização do quotidiano dispensa o dinheiro. Nas comunidades mais isoladas, naquelas que estão mais no interior da Amazónia, as populações têm à sua disposição um rio com uma abundância de peixe excecional. A maior parte das refeições no barco eram feitas com peixe apanhado pela tripulação. Para pescar à linha não era preciso isco, bastava atirar um anzol à água. Além disso, as populações podem caçar alguns animais livremente. Por todo o lado há vegetais e frutas que não precisam de ser plantadas, só precisam de ser colhidas. As pessoas vivem com poucos objetos e, a partir de certa altura, é visível que não perseguem a acumulação. Parecem não entender esse conceito. Ao contrário daqui, as pessoas não têm a ambição de possuir o máximo de objetos. Essa é talvez a principal diferença e aquela que mais impressiona.


Nas casas onde me convidavam para entrar e onde me ofereciam café em canecas de plástico, usadas há anos, quase não havia mobília, o chão era de terra varrida e as paredes de madeira estavam enfeitadas por páginas de revistas. Em casas de mais recursos, havia bonecas baratas, ainda nas caixas, penduradas nas paredes, pequenos serviços de panelas de brincar, também ainda na caixa, pendurados nas paredes. No lado boliviano, em Versalles, lembro-me de uma casa onde todos os membros da família, adultos e crianças, quiseram pousar para a minha máquina fotográfica com uma bola de basquetebol. Esse era o melhor objeto que tinham em casa. Passavam a bola uns aos outros e eram fotografados a exibi-la.





No mundo, o isolamento maior não é o de países inteiros, é o das regiões remotas de países gigantes. Mentalmente, São Paulo ou o Rio de Janeiro são tão distantes do Vale do Guaporé como aqui. A imensa maioria daqueles que, neste preciso momento, caminham pelos passeios da Avenida Paulista ou pelo calçadão do Leblon não concebem a vida no Vale do Guaporé. Muitos não imaginam sequer o estado da Rondónia. Por todo o Brasil, há inúmeros exemplos semelhantes. O Brasil é um país enorme que, com frequência, não se conhece a si próprio.


Refiro-me a lugares sem existência no google; lugares que só podem ser visitados após um avião até Porto Velho, um carro durante dez horas e um barco com cozinha, cama e piloto capaz de navegar pelo Mamoré e pelo Guaporé durante mais de uma semana. Refiro-me a quilombos, comunidades criadas por escravos fugidos que se esconderam na selva há mais de duzentos anos e que, hoje, reclamam o seu direito à terra perante madeireiros e perante as próprias instituições ambientais do país; refiro-me à imponência do Real Forte Príncipe da Beira, mandado construir pelos portugueses no século XVIII, hoje a tentar resistir à natureza, rodeado por uma povoação de poucas casas e por um quartel de jovens militares desterrados, a contarem os dias para regressarem às suas cidades; refiro-me também às aldeias da seita religiosa Missión Israelita de Nuevo Pacto Universal, homens barbudos e rapazes de cabelo comprido, mulheres e meninas de véu, a acreditarem num messias peruano que, no juízo final, apenas salvará aqueles que vivem na Amazónia; refiro-me a aldeias de palafitas, com as ruas em estrados de madeira; refiro-me a famílias a viverem em barcos, vagueando pelo rio, com as crianças a aprenderem a ler por um abecedário escrito à mão nas costas de um calendário

.

E sempre, em toda a parte, a paisagem avassaladora do rio, a Amazónia, a pureza do verde, o nascer do dia como um milagre, explosão serena do mundo.





Depois de explicar que sou português, saímos da escola de Sagarana. Quando falei a Juarez do livro de Guimarães Rosa, cujo título coincide com o nome da sua aldeia, não me ouviu. Caminhava à minha frente e ia com o sentido no lugar para onde me levava. Melhor assim.


Chegámos ao posto de saúde. Juarez queria mostrar-mo. Tratava-se de uma pequena divisão, com balcão aberto para a rua, com algumas caixas de medicamentos em prateleiras. Levantando a cabeça da mão onde estava pousada, a rapariga do balcão sobressaltou-se. Havia muito tempo que não recebia uma visita assim. Puxei o assunto do acesso à saúde, mas ela era de Guajará-Mirim e preferiu falar das saudades da família, dos amigos e de uma vida ligeiramente mais urbana.


Quando ficámos sem assunto, já estavam vistos todos os pontos de referência de Sagarana. Foi nesse momento que o telefone público, único na aldeia, começou a tocar. Uma nuvem de crianças aos gritos correram para atendê-lo. Foi um rapaz de sete ou oito anos que chegou primeiro. Atendeu em português. Todos os olhos a vê-lo, todos os ouvidos suspensos nas suas palavras.


Sim, confirmou que estavam a falar para Sagarana, disse o nome de alguém que morava ali e desligou. Nova corrida das crianças, desta vez na direção da casa da pessoa com quem queriam falar. Ao longo do rio, é para isso que servem os telefones públicos. Telefona-se para lá, vão chamar a pessoa e, ao fim de um tempo razoável, telefona-se de novo.


A pouca distância, no alpendre de uma casa fechada, abandonada, meio adormecidos, estavam vários homens a fumar cigarros e rapé. Nesse serão, esses seriam os homens que chegariam à apresentação do festival em Surpresa, conduzindo motorizadas com toda a família: um casal e três ou quatro filhos. Mas isso, seria mais tarde. Naquele momento, acompanhando a sombra de Juarez, aproximei-me. Cumprimentámo-nos com menos do que um som e ali ficámos. Lá ao fundo, seguindo uma vereda entre as ervas altas, vinha o homem para quem tinham telefonado. Sem pressa, dispunha da distância. Quando chegou, levantou o olhar para cada um de nós e parou ao nosso lado. E ali ficámos, juntos, à espera que o telefone voltasse a tocar.






Fotos de Christyann Ritse e José Luís Peixoto

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