Diante do tempo
Já estávamos no balão de ar quente há cerca de meia hora quando, de repente, deixou de ser novidade. A três mil pés de altura, número que o piloto repetia frequentemente para o rádio, a vista do deserto do Dubai mantinha-se serena. O sol continuava a subir no céu, abandonava o vermelho com que nasceu e, aos poucos, iniciava a força da sua combustão branca, incandescência refletida na areia. Ao identificar esse momento, a mulher picou o telemóvel com a ponta do indicador, acertou os auscultadores nos ouvidos e começou a ver a telenovela.
Parecia tratar-se de uma telenovela. Eu estava a espiá-la sem som, com algum distanciamento social e, claro, não tinha visto os episódios anteriores. Era uma mulher com véu, talvez de um país vizinho, segurava o telemóvel diante do rosto. Estranhei e, logo a seguir, reprovei o que me pareceu ser uma desvalorização daquele momento: estar ali, ter aquela paisagem deslumbrante ao dispor e escolher o ecrã do telemóvel.
Fiquei alguns minutos nessa censura quando dei conta que, entre os passageiros daquele cesto, a minha atitude não estava a ser muito diferente dela. Também eu desperdiçava aquela oportunidade, segundo a segundo. A atenção dela numa série no telemóvel, a minha atenção nela. Não foi para isso que acordei às quatro da manhã e que, logo a seguir, passei frio sob o ar condicionado gélido de um autocarro, durante a recolha de casais em hotéis na madrugada do Dubai.
Com essa constatação, voltei à paisagem. O balão desceu um pouco, o que permitiu voltar a distinguir a nitidez das dunas, escamas na distância, padrão infinito, a elegância das linhas afiadas no topo de cada duna, linhas onduladas e certas. Como em filmes da minha adolescência, voltei a imaginar a ideia assustadora de vaguear naquele deserto sem fim, caminhar naquelas dunas, náufrago do sol, boca seca, areia fina a passar entre os dedos.
Acompanhadas por um rugido, chamas eram lançadas no interior do balão por decisão séria do piloto. Aqueciam-me as costas e a nuca. De certeza que alguém já as comparou com chamas cuspidas por dragões. Imediatamente depois, talvez por contraste, o silêncio era mais brando, flutuávamos nele.
Este planeta, esta vida. Tive pensamentos com esse tamanho.
Assim chegou o momento em que o piloto nos pediu que adotássemos a postura de aterragem, tal como tínhamos aprendido antes de entrar no cesto. Essa posição faz doer os músculos das coxas e alimenta alguma ansiedade. Contudo, após alguns segundos, aterrámos com calma e decisão.
Enquanto esperávamos pelo jipe que nos devolveria ao autocarro, reparei de novo na mulher, continuava fixa no telemóvel. Quantas vezes me terei distraído diante de grandes oportunidades? Estar a poucos metros de Guernica e perder tempo a reparar em imperfeições do prosaico à minha volta. Hoje, esqueci essas imperfeições, apenas recordo o deslumbramento de estar em presença dessa obra de Picasso.
Provavelmente, no futuro, só recordarei a mulher que hoje assistia a uma telenovela a três mil pés de altitude quando me cruzar com estas palavras onde a descrevo. É certo que não esquecerei a grandeza do deserto. É enorme, infinito talvez, e não, não é esterilidade ou morte, é um dos grandes elementos que a natureza contem. É tempo.
Texto de José Luís Peixoto
Fotos de Patrícia Santos Pinto
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