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José Luís Peixoto

ABU DHABI, EMIRATOS ÁRABES UNIDOS

No aniversário de um país


2 de dezembro de 2021. No futuro, sempre que me ocorrer esta memória será fácil identificar a data exata. As crianças que corriam ao longo da varanda com a bandeira sobre a cabeça serão, nesse futuro, jovens adultos, sempre jovens para mim, e terão uma perceção diferente do que aconteceu, menos nítida, mais mitificada, são assim as memórias da infância. No trigésimo segundo andar daquele edifício de Abu Dhabi, a varanda era enorme, dezenas de metros de comprimento e uma boa largura, a bandeira era dos Emirados Árabes Unidos.


Tinha anoitecido sobre a cidade. Lá em baixo, para além das luzes de todos os dias, a marcarem o corpo dos arranha-céus e a cartografia das ruas, como constelações de um céu exagerado, de um universo sem freio, havia também as estradas completamente cobertas por carros, um leito de luzes brancas quando circulavam na nossa direção e de luzes vermelhas quando, lentamente, se afastavam.

Durante o dia, eu tinha visto carros como esses na marginal, ao longo da Corniche. Apesar do sol vivo, nas primeiras horas da tarde, já se iniciara a circulação desse desfile festivo. Também aí, havia crianças com bandeiras, saíam das janelas no tejadilho de jipes. Nos passeios ao longo da praia, crianças como essas corriam à volta das famílias, com vestimentas especiais, detalhes a verde, vermelho, preto e branco, essas cores repetidas em toda a parte. Os pais, as mães, todos os membros de enormes famílias sentados na relva, à sombra de palmeiras, diante de piqueniques que, àquela hora, já estavam no fim, apenas alguns restos nas travessas, nas caixas. Às vezes, homens ou mulheres, esticavam um braço preguiçoso para petiscarem. Nos caminhos, passavam pessoas que iam ou vinham de algum lado específico, eram raras aquelas que, como eu, apenas passeavam, olhando para todos os lados com espanto.


A fila para a praia das famílias avançava a bom ritmo, os adultos carregavam cadeiras desdobráveis, as crianças levavam todas as ferramentas para trabalhar a areia. A fila para a praia das pessoas sozinhas, sem família, era muito maior e conturbada, uma parede compacta e exclusiva de homens indianos, também do Bangladesh e Paquistão, camisas de colarinhos bicudos, olhares um pouco confusos. De vez em quando, em momentos aleatórios, o segurança deixava entrar uma leva desses homens, e voltava a fechar a cancela. Os que conseguiam entrar chegavam, por fim, à areia sobrepovoada, onde permaneciam junto de outros, como eles, de mãos nos bolsos.


Entretanto, ao mesmo tempo, a poucas dezenas de metros, os carros avançavam devagar, decorados com verde, vermelho, preto e branco, as cores da bandeira dos Emirados Árabes Unidos, impressa nas coberturas de pano estendidas sobre os capots. Esses carros não tinham pressa, apenas queriam fazer aquele caminho, olhar uns para os outros. À noite, a partir da varanda do trigésimo segundo andar, eram esses carros que eu recordava. Acreditava que as luzes que via lá em baixo pertenciam a esses mesmos carros. À minha volta, havia uma mesa com salgados árabes, indianos e italianos. Estava numa casa de italianos. Contavam-me a sua experiência de Abu Dhabi, o preço das escolas para as crianças, o lugar onde cortavam o cabelo, explicavam-me detalhes da cultura e do quotidiano, esperávamos juntos pelos fogos de artifício.


A paisagem, tal como estava, era já uma espécie de fogo de artifício. Anfitriões e convidados comparavam as suas lembranças de outros dias 2 de dezembro, anos anteriores que tinham passado naquela mesma varanda, fogos de artifício que ainda lhes rebentavam na memória. Então, de repente, na margem da marina, depois daquela faixa de Golfo Pérsico que tínhamos à nossa frente, alguém identificou uma imagem no ar. Eram dezenas de drones sincronizados, programados, que formavam o número 50 no ar. Depois, formaram outras imagens: uma pomba a bater as asas, a figura do xeque, a bandeira dos Emirados Árabes Unidos, claro.


A 2 de dezembro de 1971, cinquenta anos antes daquele preciso dia, o xeque Zayed bin Sultan Al Nahyan assinou os documentos que formalizaram a união de emirados que formou o país e que fez com que, naquele momento, estivéssemos juntos na varanda daquele trigésimo segundo andar de Abu Dhabi.


Os primeiros foguetes surpreenderam toda a gente. Lá no alto, escutou-se um coro de admiração que vinha de toda a cidade. A partir daí, os fogos de artifício foram inesgotáveis, jorravam sobre a noite com as suas cores, a sua luz, explodiam no céu como se explodissem dentro de nós. É interessante analisar a associação automática entre explosões e júbilo. Esse é um vínculo natural e imediato porque a alegria é uma espécie de explosão, algo que levamos por dentro rebenta e exterioriza-se, não conseguimos contê-lo, transborda em todas as direções.


Depois desse fascínio sem palavras, quando rebentou o último foguete, houve uma unanimidade de vozes gritadas, as buzinas de todos os carros que estavam nas estradas naquele momento, como se fosse a cidade inteira a falar. Também nós gritámos naquela varanda, abraçámo-nos porque, naquele momento, também nós éramos Abu Dhabi. Havemos de recordar esse momento no futuro que virá, será fácil identificar a data exata.


Texto e foto de José Luís Peixoto




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